quarta-feira, 4 de junho de 2008

Epifania da indescência dos pólos

Nossos rostos ainda estavam quentes, levemente pigmentados pelo carmim do riso - fartos da bebida, da comida, das conversas fúteis e das discussões filosóficas sobre a complexa teia alimentar da sociedade capitalista – quando saímos da lanchonete aconchegados em nossos casacos e cachecóis na tentativa de ignorar o frio de maio; polidos por um egoísmo coletivo que inesperada e momentaneamente se contrastou com aquele inseto feito de carne, quase osso, escamado por uma cor acastanhada. Era um inseto com os olhos deitados dentro de si, externados pela incompreensão daquela condição submissa, tão explícita, refletindo a miséria por dentro da alegria furtiva de nossos olhos.


O grupo fez com que a existência daquele bicho se resumisse há um segundo – os olhos imponentes encontraram-se com o medo, mas logo se reergueram para a posição nata.Expondo, assim, naquele momento, um viés de intimidação pelo terror; que da vermelhidão oca poderia irromper aquela inveja rasgada, a intensificação de sua incompreensão. O ódio por sua total invisibilidade, “Fantasmas existem”, pensaria.
Ele se viu tendo sonhos sem metamorfose.Viu-se comendo os dejetos daqueles que se esquivavam para longe de si, se viu remexendo na lixeira ostensiva dos indiferentes à procura da sobrevivência através da vida. E, finalmente, se viu por meio da realidade, ali, quase rastejando no chão, sendo ignorado por quem lhe causava admiração plena, medo impotente e ódio truculento.

E pela esquina do olho, pude observar toda a naturalidade daquela situação insólita; nós, aquecidos pelo gozo, prolongávamos nossa conversa olhando ora uns para os outros ora para o movimento da rua.Entretanto, nunca para o chão.Talvez numa tentativa de não poluir a visão ou, simplesmente, por moral transviada – ignorando, possivelmente, o mal-estar por parte de ambos não viria à tona.A opulência não seria arraigada explicitamente.
Bem, eu senti toda a repulsa na qual meu corpo se propagava, aquela ânsia em que meu espírito se revirava, causava-me dor incontestável no peito, asfixia de todos os poros. Era isso.Acabava de me deparar com a realidade.Parecia que eu havia me ausentado há muito do mundo e subitamente meus cinco sentidos se ressuscitaram, tomando minha compreensão cruelmente ao materializar tão grosseiramente o quão hipócritas estávamos sendo.


A memória das horas de discussão sobre o Estado e sua corrupção ou sobre como o capitalismo era essencialmente desumano tornava-se éter.Era com uma taça de vinho em uma das mãos e várias idéias na outra que professávamos mudanças – agora vazias - em busca da equidade social, culpávamos os outros, as autoridades pelos problemas mundiais e sua omissão.Contudo, foi naquela escadaria, em frente à rua, que o muro se desmoronou, pois o fato estava escancarado a nossa frente e nós, calmamente, o ignoramos assim como as vitimas de nossas críticas o fazem.

Provávamos a inexistência da presença do ser ignóbil que nos olhava amiúde, arredio na consciência da própria insignificância, exalando o cheiro da nossa tácita ignorância. E em meio a minha epifania humanista, fechei meus olhos de vidro tentando sentir seu frio, o pesar da pele sobre seus frágeis ossos, imaginar aquela mão calejada – áspera materialização da vida que vê o mundo do chão-; tentei sentir a imobilidade das suas víceras, já petrificadas pela fome, pelos eternos invernos de inanição.Assimilar em minhas mãos a distância tão próxima entre nós, separados apenas pelo Mundo. Apenas.


.Logo o táxi chegou e , mais uma vez, demos as costas a realidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Em um rearranjo de palavras voce fez das suas as minhas!

Gustavo Santiago disse...

belo e delicado texto social.

Você sabe onde você tá, e onde o outro está.

encherga a realidade cega as vezes, porém faz a gente ser um pouco mais humano.

beijos saudades.

Gustavo Santiago disse...

fazeis literatura meu bem
literatura!

não fique parada