sexta-feira, 20 de março de 2009

O último dia de um poeta

São nove horas da manhã.

Entra-me o sol vivo e ardente pelas frestas das venezianas. Parece que me convida a deixar o leito, e como que a reviver.Reviver! é esta a palavra: reviver quando estou certo que poucos dias ou apenas horas me separam da sepultura. Não parece um escárnio da morte? Não parece que para melhor sentir o que vou perder, deixando a vida, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade que me ficam na terra?

Melhor fora, decerto, para minha perfeita contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com seu aspecto mais sombrio e aflitivo. Então, cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e uma angústia, e que ia os ares puros de uma vida sem igual.¹

Depois de meu último suspiro,como seria?Adentraria no jardim do Éden,nos campos Elísios; ou se consagraria que Renoir fora apenas exclusividade terrena - a realidade,então, não seriam tão cruel quanto dizem- e o paraíso seria um pouco mais pálido, tez desbotada e olhos nus?Ou seria um mar de leite em silêncio absoluto?

Epifania mórbida da hora íntima,são apenas restos mortais de um poeta terminal que desperta seu espírito vetusto na veemência da manhã.Deixando-se morrer pela luz.De legado para o mundo,deixo minhas palavras,não tão nobres,mas de diferentes tons, saudosistas de uma humanidade,aflitivos por amor.Deixo-me só,deixo-me em prosa e verso,diluído em odes e dramas.Diluído em si mesmo. Deixarei esses olhos cansados, o corpo encarquilhado e essas mãos que não são (mais) minhas.Abandonarei essa natureza morta.

No fim, o futuro perde o sentido; não importa para onde se vai,mas como se morre - pobre Ilitch,deixou o mundo em pleno desespero.Mas eu deixarei essa vida sutilmente,com o pensamento mudo, livre e embriagado por toda arte e poesia que esses cálidos feixes de luz me fazem desvanescer.







¹ trecho machadiano.Originalmente o conto ' O último dia de um poeta' é de Machado de Assis, apenas adaptei a partir daí.

Um comentário:

Gustavo Santiago disse...

Gosto das suas coisas, não é fácil o primeiro contato, mas quando se tem a ess~encia do que você escreve, é como a gente comece pelas beradas, saboreando, como os vinhos superiores em que a gente vai bebendo devagar para reconhecer realmente o gosto.