terça-feira, 24 de março de 2009

Infância Interrompida


O surdo som despertou seu sono sem sonhos; e o afiado estardalhaço de vidro cortou-lhe as pálpebras tornando seu olhar extático e frio.A mente em branco. Pensou por um minuto ter flagrado o coração sem bater.
Repentinamente pousou um silêncio perturbador pelo corredor da casa. A luz bruxuleante ritmava os passos esparsos de menina, enquanto a longa camisola de algodão puído era arrastada pelo chão de granito.Ainda absorta pelo súbito despertar, rastejava os olhos pelos cantos dos cômodos, ignorando os móveis, a posição dos quadros ou da boneca jogada no rodapé da estante. Automaticamente se guiava sem fixar-se em nada.Na escada.Até na escada.Onde os pensamentos se desconectavam, não havia linha coesa de raciocínio.Abaixo estava o abismo, mas ela descia altivamente dos degraus de sua indecisão; rumo a total inconsciência dos fatos. Eram fatos demais. Era realidade demais.No fim da escada.

As mãos mortas, banhadas no seu próprio sangue, e o cão, tomado de sarna e maus tratos, pusera-se em cima do peito cadavérico - peito que outrora alentou tepidamente aquele corpo frágil de criança no incondicional amor materno - esfregando-se nos nódulos vermelhos, agitando toda aquela parafernália inerte.

Obituário:
Mulher, 30anos, vendia sorrisos, falsos e sinceros, como profissão, servindo champagne e caviar como aperitivo. Socialite por casamento. Exímia jogadora de bridge.Fazia caridade nas horas vagas. Manchou de vermelho o cabelo loiro, os olhos verdes tornaram-se vítreos, e no ventre um jardim de rosas nasceu.

Uma lufada de vento adentra o saguão fazendo a menina sentir o cheiro férreo impregnar o corpo do cachorro – estranho cão que nunca havia visto - e se transportar para ela. Nauseava-se naquele quadro pitoresco (de familiaridade e morte, como um bizarro Kahlo) no qual o cão se cansou, finalmente.Olhou, então, as próprias mãos, o corpo quase todo estava sujo do sangue que o cão lavou.

Levantou-se desnorteada acolhendo a nebulosa vertigem nos seus olhos miúdos, desencontrando seus passos trôpegos que a levavam involuntariamente para o refúgio do pai, a biblioteca. A grande saleta envolvida de livros agora ardia as narinas.Cheiro forte, cheiro acre.Queimado.Pó escuro no chão.Pólvora.
Arrastava-se até a poltrona de couro surrado, a favorita do pai, tendo a sensação que a fez rodear vagarosamente o local, deixando os olhos sempre recuarem de suspeita.No couro, a cabeça tombada, completamente ensangüentada. “Papai?”.

Obituário:
Homem, 43anos, vítima de abuso psicológico do poder pelo pai. Charuto e conhaque como terapia.Reservado, exceto nas sextas à noite. Bem-sucedido homem de negócios com irremediável fraqueza pelo jogo.Uma má aposta o levou ao seu fim. E uma bala calibre 38 o atingiu a queima roupa na cabeça.

A única palavra que seus lábios atreveram-se a pronunciar quebrando o silêncio que se manifestava como uma nênia muda. Os pensamentos se difundiram na sua própria vertigem, adquirindo cor própria, obscuros.Uma densa valsa de imagens ininterruptas tornara os pensamentos puramente cegos, sem reação.

Alheia a toda realidade foi hipnotizada para o centro da biblioteca,perto de onde era o bar. Eram tantos copos. Copos de todos os tamanhos e de muitos cheiros. Copos do passado.Todos de vidro.Na sua memória todos despedaçados no chão, transformando o chão em um tapete brilhante tão convidativo e seus pés seguiam em frente naquela curiosidade. Macios, pisavam em diversos cacos de vidro.Matéria que amputava seu corpo e expurgava o espírito - assim como dizia o homem de preto de todos os mórbidos domingos.
Era uma sensação tão diferente.Sentia frio, seus pés doíam, exangues, então, no meio do novo tapete deitou-se tornando ele sua cama . Agora,deitada,olhando diretamente os olhos da mãe como se quem suplicasse por abrigo,desfaleceu-se na inconsciência daquela manhã de ilusões e quimeras que o inverno acolhia.Imberbe em esquecimento aconchegou as pernas perto do peito até ficar com um sono estranho. Deixou-se dormir.

Mas tão cedo clareou e seu corpo estava limpo de novo.Sua mãe, de pé,olhava espantada a filha deitada no chão.Pálida.Ao lado da vidraça estilhaçada. O sonho fora pura autopreservação infantil de um barulho qualquer.A casa estava quente novamente.

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